Por: Alexandre Reis*
Como comumente ocorre a todos os
temas polêmicos que transitam em locais de grande visibilidade, eles são debatidos pelos
“intelectuais oficiais” de maneira superficial e, o que é pior, parcial. Ser a
favor da redução da maioridade penal em nosso país é defender um upgrade
no mecanismo institucional de exclusão e discriminação. Não há meio termo nesse
ponto. O que causa divisão nesse grupo a favor da redução da maioridade é que alguns defendem porque
são conscientes dos efeitos e outros porque são iludidos com uma narrativa no
estilo “Cidade Alerta” que coloca a impunidade como a única causa do crime.
Essa narrativa da punição sempre apareceu em meus debates sobre o tema. Não foi
diferente no último, quando, no grupo UFSCar do Facebook, dispararam essa:
“A questão não é diminuir,é punir.
Pergunte pra uma mãe que teve um filho morto por uma" criança" dessas
se ela não tem razão em ser a favor da redução.”
Vivemos num país erguido sobre a discriminação e a exclusão do povo preto. Esse contexto deveria tornar evidentes os
efeitos da ideologia conservadora que dá ao indivíduo total responsabilidade
por sua história, mas, como aquela frase mostra, isso não é evidente para os
que compram tal ideologia sem saber.
Assim, o que se faz necessário, nesse
contexto, é termos na ponta da língua os fundamentos e os argumentos que
serviram para instituir as cotas para negros e estudantes pobres. Logo de cara
podemos bater o martelo de que defendemos uma concepção de indivíduo que é
fruto de e possui uma história. Não são aquelas velhas ideias deterministas que
não davam espaço para a individualidade, pelo contrário, é a defesa de uma
individualidade que tenha direito a voz por não estar calada e atada com as mordaças do
individualismo e da meritocracia. Em resumo e para gravar: uma luta que se trava
contra o conservadorismo começa por afirmar a historicidade de todo o sujeito.
Alguns podem pensar “olha o marxista
falando”, mas, mesmo sendo empiricamente verdade, não posso ser injusto e
compartilhar dessa visão que dá ao marxismo o monopólio da defesa da
historicidade. Essa bandeira transcende muito o marxismo como essa frase de
Abdias do Nascimento nos mostra:
Abdias do Nascimento,1983/acervo Ipeafro.
"A história do Brasil é
uma versão concebida por brancos, para os brancos e pelos brancos, exatamente como sua estrutura
econômica, sociocultural, política e militar tem sido usurpada da maioria da população para o
benefício exclusivo de uma elite branca/brancóide, supostamente de origem
ário-europeia (Nascimento in O quilombismo, p.15)."
Dito isso, podemos agora trazer uns fatos
que revelam um pouco da historicidade do negro no Brasil. Começando pelo que é
já lugar-comum, lembramos que o pós-abolição não foi um corte entre uma
sociedade escravagista e outra sociedade igualitária. Se, nesse momento, os
negros sofreram na pele os efeitos de uma história que não os permitiu o acesso
a uma formação educacional, tal situação se agravou quando o Estado interveio
para incentivar a imigração de europeus sob uma demanda do mercado de trabalho, o que colocou os negros numa maior
desvantagem. Podemos ver aqui o embrião do racismo institucional por essa
combinação de falta de politicas públicas que conduzissem o negro para uma
efetiva cidadania e o incentivo do Estado às imigrações? Acredito que sim.
É impressionante que esse papel do
Estado como reprodutor e criador de desigualdades raciais (racismo
institucional) só recentemente, do ponto de vista histórico, tenha sido
estudado. Isso só foi possível pela organização de movimentos sociais que
lutaram por uma sociedade que não excluísse os negros, ou seja, os movimentos
sociais que compunham o Movimento Negro. Interessante notar aqui essa constante:
foi só com a mobilização negra que o Estado, como ferramenta de discriminação e
exclusão, foi questionado. Essa necessidade de se ver o outro lado, o lado do
excluído, fica evidente numa frase do jornalista negro José Correia Leite
explicando a necessidade de uma imprensa negra:
“a comunidade negra tinha necessidade
de uma imprensa alternativa, que transmitisse informações que não se obtinha em
outra parte.” (in E disse o velho
militante: depoimentos e artigos. Organizado por Cuti, p. 33)
Não vou pontuar outros momentos
históricos do Movimento Negro, mas gostaria de deixar claro a semelhança das
pautas que estavam no surgimento desse movimento com duas pautas mais próximas
de nós, a defesa das ações afirmativas e a luta contra a redução da maioridade
penal. Todas elas se configuram num cenário onde o lado dominante tenta calar
os oprimidos: na época de José Correia Leite, pelo monopólio dos jornais, em
nossa época, pela defesa da meritocracia e do individualismo, no debate das
ações afirmativas, e defesa duma visão onde o crime se combate exclusivamente
pela punição, no debate da redução.
Nos debates sobre ações afirmativas
tivemos, mais uma vez, como adversários uma ideia reducionista, que foi aquela
que entende igualdade somente de uma maneira formal. Nesse sentido, o discurso
dos anti-cotas foi e ainda é muito previsível: as cotas ferem o princípio
formal de igualdade. O lado esquecido por esse discurso, seja de forma
consciente ou não, é que o conceito de igualdade evoluiu muito no meio jurídico
por conta das desigualdades criadas pelo capitalismo. As lutas dos operários
por melhores condições de trabalho trouxeram para o centro do debate jurídico
uma visão onde a igualdade formal não era desassociada da igualdade material.
Esse abandono do individualismo em
prol de um pensamento mais social e do formalismo em prol de um pensamento mais
concreto também permitiu que as ciências sociais descobrissem fenômenos que não
são redutíveis ao indivíduo em si, como o racismo institucional:
...a ciência social começa a abandonar os esquemas
interpretativos que tomam as desigualdades raciais como produtos de ações
(discriminações) inspiradas por atitudes (preconceitos) individuais, para
fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido como racismo
institucional, ou seja, na proposição de que h· mecanismos de discriminação
inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, à
revelia dos indivíduos. ( A (Antônio Sérgio Alfredo Guimarães in
Desigualdade que anula a desigualdade: notas sobre a ação afirmativa, p.156)
Já no atual debate sobre a
redução da maioridade penal, a posição dos conservadores é marcado por outro
reducionismo: o do discurso da impunidade. O que é deixado de lado aqui é, simplesmente,
a principal causa de nossos níveis alarmantes de criminalidade: a
desigualdade social. Essa lógica do mais-punição = menos-crime seria inaceitável na maior parte do mundo, mas no contexto brasileiro ela se torna
mais que isso, ela se torna criminosa porque ignora que grande parte da
criminalidade tem motivação na eterna reprodução do círculo de ferro da
pobreza, por conta da ausência de políticas públicas inclusivas, e, no caso dos negros,
também pelo racismo institucional.
Crianças biricando entre o lixo e escombros. Virgem dos Pobres/Maceió/AL/Brasil (Crédito: Tudo na Hora)
Crianças biricando entre o lixo e escombros. Virgem dos Pobres/Maceió/AL/Brasil (Crédito: Tudo na Hora)
Ou seja, para se falar de juventude
negra e pobre no Brasil, deve-se falar também dessas duas forças que não são
redutíveis ao indivíduo, o racismo institucional e o círculo de ferro da
pobreza, e que empurram essa juventude para a marginalização. Lembrar-se dessas
duas forças também nos serve para sairmos de uma visão igualmente reducionista
do racismo, que o coloca como sendo algo intencional do indivíduo. Vemos toda
uma mídia mobilizada para falar de racismo no Brasil somente pelo viés da
atitude racista, ou seja, aquela que há intenção de discriminar. Esse outro
reducionismo deve ser combatido nesse novo debate sobre a redução da maioridade
penal para pautarmos o lado mais perverso dos mecanismos que condenam o negro e que serão, caso seja aprovada, enormemente reforçados: os
mecanismos institucionalizados.
A juventude negra, independente da
classe social, é já forçada a receber menor atenção dos professores; forçada a
ter sua cultura posta do lado de fora da escola; forçada a estudar uma história
de brancos e para brancos; forçada a ser vítima de estereótipos criados todos
os dias pela grande mídia; forçada a ser o alvo preferencial de uma arma
policial e tudo isso se agrava enormemente quando lembramos do machismo, a
outra força que se alia àquelas duas para discriminar a mulher negra.
Portanto, os defensores da juventude negra e pobre devem ficar atentos às outras reduções que aquela
bandeira conservadora nos traz: reducionismo individualista, que procura apagar
a historicidade, ou trajetória, dos sujeitos; reducionismo da concepção de
igualdade, que não se atenta para a igualdade material; reducionismo da lógica mais-punição
= menos-crimes, que busca ocultar os papéis da desigualdade social, do racismo
institucional e do círculo de ferro da pobreza nesse fenômeno social e, por
fim, o reducionismo da concepção de racismo, que o coloca unicamente como ação
subjetiva e ignora seu lado institucionalizado.
* Graduando em Letras pela UFSCar. Formado em Português pela Universidade de Coimbra (Portugal) no abrigo do Programa de Licenciatura Internacional (PLI, Capes). Frequentou por dois anos (2008-2009) o curso de Letras na Universidade de Santo Amaro (UNISA) com uma bolsa integral do ProUni. Membro do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe) sob a coordenação do Prof. Dr. Valdemir Miotello, no qual desenvolvemos pesquisas sobre Filosofia da Linguagem, tendo como suporte as ideias de Mikhail Bakhtin. Tem interesse nas áreas de Filosofia da Linguagem, Hermenêutica, Análise de Discurso, Filosofia da Ciência, Filosofia Política, Literaturas Africanas e Ensino-Aprendizagem.
Textos
consultados:
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro
brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Niterói ,
v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007
. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042007000200007&lng=en&nrm=iso
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo;
SOUZA, Jessé. A desigualdade que anula a desigualdade: notas sobre a ação
afirmativa no Brasil. Multiculturalismo e racismo: uma comparação
Brasil-Estados Unidos. Brasília: Paralelo, v. 15, p. 233-242, 1997.
SILVERIO, Valter Roberto. Ação afirmativa e o
combate ao racismo institucional no Brasil. Cadernos de pesquisa, v. 117, p.
219-246, 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/cp/n117/15560.pdf